Passando o afã das eleições
gerais de 2014, onde vimos o destilamento do ódio sem precedentes, queria
convidá-los a uma reflexão séria e madura sobre uma pequena problemática que
notei nas hostes políticas: a relação de clérigos católicos e partidos
políticos.
Em um
determinado momento da campanha política, por curiosidade entrei no perfil de
um sacerdote católico pertencente à Arquidiocese de Florianópolis, onde o mesmo
soltava sua verborragia contra um determinado partido político. Mais o que mais
notei foram os comentários a postagem desse sacerdote, onde claramente percebi
uma divisão e muitas vezes brigas entre os comentaristas. Fiquei intrigado com
aquilo, pois, tratando-se de um padre católico, sua linha de reflexão deveria
ser sim combativa, denunciativa, mas ao mesmo tempo uma promoção do Reino de
Deus, onde a paz e a solidariedade deveriam reinar. Cometi o erro de questionar
a conduta dele como sacerdote e recebi pouco tempo uma grosseria do mesmo, onde
ele palavras como “merda” dentre outros termos de baixo calão surgiram.
Quem
conhece minha história de vida sabe que fui filiado a partido político em um
passado não muito distante e militei de forma assídua. Acontece que ao reingressar
no seminário procurei não opinar sobre o assunto a fim de não causar mais
escândalos. Diz em Lc 17,1-2: “É inevitável que aconteçam escândalos. Mas ai
daquele que produz escândalos! Seria melhor para ele que lhe amarrassem uma
pedra de moinho no pescoço e o jogassem no mar, do que escandalizar um desses
pequeninos.”
Papa Leão XIII e fac-símile da encíclica "Rerum Novarum" que condena tanto o capitalismo quanto o socialismo |
Sabemos que
não há como falar de política sem paixão, por isso um sacerdote deve ter o
cuidado muito delicado ao abordar esse tema, principalmente quando cai em
opiniões sobre determinados partidos políticos. É de conhecimento (ou pelo
menos deveria ser) dos sacerdotes os documentos papais que tratam da política
juntamente com a doutrina social da Igreja (Rerum
Novarum, de Leão XIII, Mit brennender
Sorge, de Pio XI, Evangelii Gaudium,
de Francisco, dentre outros), onde tanto as doutrinas de cunho
libertal/capitalista quanto as socialistas/comunistas são condenadas. Quando um
sacerdote se posiciona sobre elas deve englobá-las no mesmo patamar que a
Igreja coloca ou será tendencioso.
Sobre a
associação de padres a partidos políticos, o Código de Direito Canônico é bem
claro nos cânones 285 §3 e 287 §
1 e 2:
Cânon 285 § 3. Os clérigos são
proibidos de assumir cargos públicos que implicam participação do exercício do
poder civil.
Canôn 287 - § 1. Os clérigos promovam sempre e o
mais possível a manutenção entre os homens, da paz e da concórdia fundamentada
na justiça.
§ 2. Não tenham parte ativa nos partidos políticos e na
direção de associações sindicais, a não que, a juízo da competente autoridade
eclesiástica, o exijam a defesa dos direitos da Igreja ou a promoção do bem
comum.
O papa emérito Bento XVI, em 2009, ao receber numa visita ad limina bispos do Nordeste brasileiro, recordou que "os sacerdotes devem favorecer a unidade e a comunhão de todos os fieis e, por isso, devem manter-se afastados da política, que é um campo de atuação dos leigos".
Curiosamente, somente dois clérigos católicos podem
exercer um poder político: o bispo de Roma (o papa), que é o chefe de Estado do
Vaticano, e o bispo de Urgel (na Espanha), que é um dos dois co-príncipes de
Andorra.
Papa Francisco (bispo de Roma) e Dom Joan Enric Vives i Sicilia (bispo de Urgel) |
Pe. Barthélemy Boganda |
Grande parte das experiências de clérigos católicos
com a política partidária foram desastrosas, principalmente no campo da moral:
um caso notório na década de 40 foi do centro-africano Pe. Barthélemy Boganda,
que deixou o ministério sacerdotal em 1949, quando era deputado na Assembleia
Nacional Francesa. Casou em 1950, após questionar o celibato católico num front ideológico com seu bispo, Dom Joseph
Cucherousset e querer contrair matrimônio ainda como sacerdote. Barthélemy
tornou-se o 1º primeiro-ministro da República Centro-Africana, chamado de “pai fundador”
desse país.
Outros casos famosos controversos: Pe. Fulbert Youlou,
1º presidente do Congo entre 1959 e 1963, além de ter sido suspenso do
ministério sacerdotal, foi deposto em um golpe de Estado, indo morar de forma
marital na Espanha, onde veio a falecer em 1972; Pe. Jean Bertrand Aristide,
SDB1, que foi presidente do Haiti por duas oportunidades, deixou o
ministério e contraiu matrimônio, também tendo sido deposto duas vezes, foi
acusado de corrupção, exilado e atualmente está em prisão dominiciliar; Dom
Fernando Lugo, SVD2, bispo de San Pedro, no Paraguai, precisou pedir
a perda do estado clerical a fim de ser presidente deste país (a lei paraguaia
não permite que clérigos religiosos sejam candidatos), ganhando as eleições em
2008, mas foi deposto pelo Senado em 2012.
Da esquerda para a direita: Pe. Fulbert Youlou, Pe. Jean-Bertrand Aristide e Dom Fernando Lugo, experiências desastrosas de clérigos na função política |
Pe. Cícero |
No Brasil, temos tanto experiências desastrosas como
positivas. Lembrando que a proibição de clérigos tomarem cargos públicos vai
até uma autorização do superior (bispo ou provincial no caso de uma
ordem/congregação religiosa), tivemos casos de padres que foram obrigados
moralmente a assumirem cargos públicos devido a problemas regionais (lembremos
de regiões onde ainda impera o coronelismo, sendo a Igreja a única fonte de
refúgio para os seus). O caso mais notório e controverso no Brasil foi o do Pe.
Cícero Romão Batista, o famoso Padim Ciço,
que foi prefeito de Juazeiro do Norte entre 1911- 1912 e 1914-1927, além de
vice-governador do Ceará entre 1914-1916 (acumulando funções como prefeito de
Juazeiro). Em 2014, 23 padres disputara as eleições gerais, apesar da proibição
canônica. Para mais informações, segue o link: http://eleicoes.uol.com.br/2014/noticias/2014/09/08/apesar-da-proibicao-da-igreja-catolica-23-padres-disputam-as-eleicoes-2014.htm
A Igreja acredita que o mais sensato são os seus
clérigos acompanharem leigos para que possam assumir cargos públicos de forma
honrada e dentro dos princípios invioláveis que devem reger a sã consciência
humana. Esse acompanhamento pastoral não é fácil, e por vezes vemos sacerdotes
desprezarem bons candidatos que surgem no interior das pastorais em nome de uma
“neutralidade”. Em contrapartida, outros que usam da Igreja para conseguir suas
pretensões pessoais são levemente tolerados, pois usam da máquina pública
beneficiando determinadas comunidades, e isso faz com que alguns clérigos
tenham um apoio velado.
Para o leitor, suas próprias conclusões. Lembremos que
os clérigos devem antes de tudo promover a paz e a justiça. Muitas vezes o
engajamento, a opinião e a filiação partidária trazem à tona escândalos e
confusões nas comunidades. É preciso assumir posturas que estejam acima do
debate partidário, pois política de verdade não se faz apenas assim.
__________
1
SDB: Salesianos de Dom Bosco.
2
SVD: Sociedade do Verbo Divino
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CONSELHO
EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Católicos e
políticos: uma identidade em tensão. São Paulo: Paulinas, 2006 (Col. Quinta
Conferência: Realidade social).
PONTIFÍCIO
CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da
Doutrina Social da Igreja. 7. ed. São Paulo: Paulinas: 2013
VÁRIOS.
Código de Direito Canônico. 15. ed. São
Paulo: Loyola, 2002.
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