quarta-feira, 28 de maio de 2014

Quando nada mais resta


         
         Viktor Emil Frankl (1905-1997) foi um médico psiquiatra austríaco, fundador da escola de psicanálise conhecida como Logoterapia, um método que aborda o existencial e o espiritual do ser humano nas análises. Entre 1942 a 1945, Frankl, recém casado com Tilly Grosser, sofre perseguição dos nazistas, tendo sido preso no gueto de Theresienstadt, e nos campos de concentração de Auschwitz, Kaufering e Türkheim. Sua esposa morreu com 24 anos no campo de Bergen-Belsen em 1944, fato que Frankl somente soube depois de sua libertação pelas tropas estadunidenses.
           Escreveu um maravilhoso livro, que praticamente inicia a escola logoterápica, chamado "Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração", onde relata os horrores e o faz uma análise existencial dos acontecimentos do local. Escolhi um dos mais belos trechos que li desta obra magnífica, onde ele relata que o amor pode salvar o ser humano mesmo nos momentos mais terríveis de sua vida.
Viktor E. Frankl na década de 90

            Enquanto avançamos aos tropeços, quilômetros a fio, vadeando pela neve ou resvalando no gelo, constantemente nos apoiamos um no outro, erguendo-se e arrastando-nos mutuamente. Nenhum de nós pronuncia uma palavra mais, mas sabemos neste momento que cada um só pensa em sua mulher. Vez por outra olho para o céu onde vão empalidecendo as estrelas, ou para aquela região do horizonte em que assoma a alvorada por detrás de um lúgubre grupo de nuvens. Mas agora meu espírito está tomado daquela figura à qual ele se agarra com uma fantasia incrivelmente viva, que eu jamais conhecera antes na vida normal. Converso com minha esposa. Ouço-a responder, vejo-a sorrindo, vejo seu olhar como que a exigir e a animar ao mesmo tempo e – tanto faz se é real ou não a sua presença – seu olhar agora brilha com mais intensidade que o sol que está nascendo. Um pensamento me sacode. É a primeira vez na vida que experimento a verdade daquilo que tantos pensadores ressaltaram como a quintessência da sabedoria, por tantos poetas cantada: a verdade de que o amor é, de certa forma, o bem último e supremo que pode ser alcançado pela existência humana. Compreendo agora o sentido das coisas últimas e extremas que podem ser expressas em pensamento, poesia – e em fé humana: a redenção pelo amor e no amor! Passo a compreender que a pessoa, mesmo que nada mais lhe reste neste mundo, pode tornar-se bem-aventurada – ainda que somente por alguns momentos – entregando-se interiormente à imagem da pessoa amada. Na pior situação exterior que se possa imaginar, numa situação em que a pessoa não pode realizar-se através de alguma conquista, numa situação em que sua conquista pode consistir unicamente num sofrimento reto, num sofrimento de cabeça erguida, nesta situação a pessoa pode realizar-se na contemplação amorosa da imagem espiritual que ela porta dentro de si da pessoa amada. Pela primeira vez na vida entendo o que quer dizer: Os anjos são bem-aventurados na perpétua contemplação, em amor, de uma glória infinita...


            À minha frente um companheiro cai por terra, e os que vão atrás dele também caem. Num instante, o guarda está lá e usa seu chicote sobre eles. Por alguns segundos interrompe minha vida contemplativa. Mas num abrir e fechar de olhos eleva-se novamente minha alma, salva-se mais uma vez do aquém, da existência prisioneira, para um além que retoma mais uma vez o diálogo com o ente querido: Eu pergunto – ela responde; ela pergunta – eu respondo.
            “Alto!” Chegamos ao local da obra. “Cada qual busque sua ferramenta! Cada um pegue uma picareta e uma pá!” E todos se precipitam para dentro do galpão completamente às escuras para arrebanhar uma pá jeitosa ou uma picareta mais firme. “Como é, não vão se apressar, seus cachorros imundos?” Dali a pouco estamos no valo, cada um em seu lugar da véspera. A picareta estilhaça o chão congelado, soltando até fagulhas. Nem mesmo os cérebros ainda degelaram, os companheiros continuam calados. Meu espírito ainda se apega à imagem da pessoa amada. Continuo falando com ela, e ela continua falando comigo. De repente me dou conta: nem sei se minha esposa ainda vive! Naquele momento fico sabendo que o amor pouco tem a ver com a existência física de uma pessoa. Ele está ligado a tal ponto à essência espiritual da pessoa amada, a seu “ser assim” (nas palavras dos filósofos) que a sua “presença” e seu “estar-aqui-comigo” podem ser reais sem sua existência física em si e independente de seu estar com vida. Eu não sabia, nem poderia ou precisaria saber, se a pessoa amada estava viva. Durante todo o período do campo de concentração não se podia escrever nem receber cartas. Mas isto naquele momento de certa forma não tinha importância. As circunstâncias externas não conseguiam mais interferir do meu amor, na minha lembrança e na contemplação amorosa da imagem espiritual da pessoa amada. Se naquela ocasião tivesse sabido: minha esposa está morta – acho que este conhecimento não teria perturbado meu enlevo interior naquela contemplação amorosa. O diálogo espiritual teria sido igualmente intenso e gratificante. Naquele momento me apercebo da verdade: “Põe-me como um selo sobre o teu coração... por que o amor é forte como a morte.” (Cantares 8.6)



FRANKL, Vikor E. Em busca de sentido. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2001, pp. 43-44.

3 comentários:

  1. Excelente postagem! Viktor Frankl foi um dos maiores autores da psicologia! Deixa no tapete as loucuras de Freud!!

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  2. Muito bom artigo. Concordo plenamente e sou prova. Sofro muito por alguem que me relacionei durante 4 anos e depois, descubro que ele tinha outra.
    Ele me enganou e enganou minha familia. Nós apostávamos nele e fizemos tudo para ele se estabilizar profissionalmente e financeiramente.
    Eu acreditei nele. Projetei minha vida com ele.
    E agora?
    Só Deus para me salvar...pois não devia ter doado minha vida, como fiz.
    Que o Senhor me ajude!

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  3. Amei o texto. Bem didatico.

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