quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Os padres e a política partidária


Passando o afã das eleições gerais de 2014, onde vimos o destilamento do ódio sem precedentes, queria convidá-los a uma reflexão séria e madura sobre uma pequena problemática que notei nas hostes políticas: a relação de clérigos católicos e partidos políticos.
            Em um determinado momento da campanha política, por curiosidade entrei no perfil de um sacerdote católico pertencente à Arquidiocese de Florianópolis, onde o mesmo soltava sua verborragia contra um determinado partido político. Mais o que mais notei foram os comentários a postagem desse sacerdote, onde claramente percebi uma divisão e muitas vezes brigas entre os comentaristas. Fiquei intrigado com aquilo, pois, tratando-se de um padre católico, sua linha de reflexão deveria ser sim combativa, denunciativa, mas ao mesmo tempo uma promoção do Reino de Deus, onde a paz e a solidariedade deveriam reinar. Cometi o erro de questionar a conduta dele como sacerdote e recebi pouco tempo uma grosseria do mesmo, onde ele palavras como “merda” dentre outros termos de baixo calão surgiram.
            Quem conhece minha história de vida sabe que fui filiado a partido político em um passado não muito distante e militei de forma assídua. Acontece que ao reingressar no seminário procurei não opinar sobre o assunto a fim de não causar mais escândalos. Diz em Lc 17,1-2: “É inevitável que aconteçam escândalos. Mas ai daquele que produz escândalos! Seria melhor para ele que lhe amarrassem uma pedra de moinho no pescoço e o jogassem no mar, do que escandalizar um desses pequeninos.”
Papa Leão XIII e fac-símile da encíclica "Rerum Novarum"
que condena tanto o capitalismo quanto o socialismo
            Sabemos que não há como falar de política sem paixão, por isso um sacerdote deve ter o cuidado muito delicado ao abordar esse tema, principalmente quando cai em opiniões sobre determinados partidos políticos. É de conhecimento (ou pelo menos deveria ser) dos sacerdotes os documentos papais que tratam da política juntamente com a doutrina social da Igreja (Rerum Novarum, de Leão XIII, Mit brennender Sorge, de Pio XI, Evangelii Gaudium, de Francisco, dentre outros), onde tanto as doutrinas de cunho libertal/capitalista quanto as socialistas/comunistas são condenadas. Quando um sacerdote se posiciona sobre elas deve englobá-las no mesmo patamar que a Igreja coloca ou será tendencioso.

            Sobre a associação de padres a partidos políticos, o Código de Direito Canônico é bem claro nos cânones 285 §3 e 287 § 1 e 2:

Cânon 285 § 3. Os clérigos são proibidos de assumir cargos públicos que implicam participação do exercício do poder civil.
Canôn 287 - § 1. Os clérigos promovam sempre e o mais possível a manutenção entre os homens, da paz e da concórdia fundamentada na justiça.
§ 2. Não tenham parte ativa nos partidos políticos e na direção de associações sindicais, a não que, a juízo da competente autoridade eclesiástica, o exijam a defesa dos direitos da Igreja ou a promoção do bem comum.

            O papa emérito Bento XVI, em 2009, ao receber numa visita ad limina bispos do Nordeste brasileiro, recordou que "os sacerdotes devem favorecer a unidade e a comunhão de todos os fieis e, por isso, devem manter-se afastados da política, que é um campo de atuação dos leigos".
Curiosamente, somente dois clérigos católicos podem exercer um poder político: o bispo de Roma (o papa), que é o chefe de Estado do Vaticano, e o bispo de Urgel (na Espanha), que é um dos dois co-príncipes de Andorra.
Papa Francisco (bispo de Roma) e Dom Joan Enric Vives i Sicilia (bispo de Urgel)
Pe. Barthélemy Boganda
Grande parte das experiências de clérigos católicos com a política partidária foram desastrosas, principalmente no campo da moral: um caso notório na década de 40 foi do centro-africano Pe. Barthélemy Boganda, que deixou o ministério sacerdotal em 1949, quando era deputado na Assembleia Nacional Francesa. Casou em 1950, após questionar o celibato católico num front ideológico com seu bispo, Dom Joseph Cucherousset e querer contrair matrimônio ainda como sacerdote. Barthélemy tornou-se o 1º primeiro-ministro da República Centro-Africana, chamado de “pai fundador” desse país.
Outros casos famosos controversos: Pe. Fulbert Youlou, 1º presidente do Congo entre 1959 e 1963, além de ter sido suspenso do ministério sacerdotal, foi deposto em um golpe de Estado, indo morar de forma marital na Espanha, onde veio a falecer em 1972; Pe. Jean Bertrand Aristide, SDB1, que foi presidente do Haiti por duas oportunidades, deixou o ministério e contraiu matrimônio, também tendo sido deposto duas vezes, foi acusado de corrupção, exilado e atualmente está em prisão dominiciliar; Dom Fernando Lugo, SVD2, bispo de San Pedro, no Paraguai, precisou pedir a perda do estado clerical a fim de ser presidente deste país (a lei paraguaia não permite que clérigos religiosos sejam candidatos), ganhando as eleições em 2008, mas foi deposto pelo Senado em 2012.
Da esquerda para a direita: Pe. Fulbert Youlou, Pe. Jean-Bertrand Aristide e
Dom Fernando Lugo, experiências desastrosas de clérigos na função política
Pe. Cícero
No Brasil, temos tanto experiências desastrosas como positivas. Lembrando que a proibição de clérigos tomarem cargos públicos vai até uma autorização do superior (bispo ou provincial no caso de uma ordem/congregação religiosa), tivemos casos de padres que foram obrigados moralmente a assumirem cargos públicos devido a problemas regionais (lembremos de regiões onde ainda impera o coronelismo, sendo a Igreja a única fonte de refúgio para os seus). O caso mais notório e controverso no Brasil foi o do Pe. Cícero Romão Batista, o famoso Padim Ciço, que foi prefeito de Juazeiro do Norte entre 1911- 1912 e 1914-1927, além de vice-governador do Ceará entre 1914-1916 (acumulando funções como prefeito de Juazeiro). Em 2014, 23 padres disputara as eleições gerais, apesar da proibição canônica. Para mais informações, segue o link: http://eleicoes.uol.com.br/2014/noticias/2014/09/08/apesar-da-proibicao-da-igreja-catolica-23-padres-disputam-as-eleicoes-2014.htm

A Igreja acredita que o mais sensato são os seus clérigos acompanharem leigos para que possam assumir cargos públicos de forma honrada e dentro dos princípios invioláveis que devem reger a sã consciência humana. Esse acompanhamento pastoral não é fácil, e por vezes vemos sacerdotes desprezarem bons candidatos que surgem no interior das pastorais em nome de uma “neutralidade”. Em contrapartida, outros que usam da Igreja para conseguir suas pretensões pessoais são levemente tolerados, pois usam da máquina pública beneficiando determinadas comunidades, e isso faz com que alguns clérigos tenham um apoio velado.
Para o leitor, suas próprias conclusões. Lembremos que os clérigos devem antes de tudo promover a paz e a justiça. Muitas vezes o engajamento, a opinião e a filiação partidária trazem à tona escândalos e confusões nas comunidades. É preciso assumir posturas que estejam acima do debate partidário, pois política de verdade não se faz apenas assim.

__________
1 SDB: Salesianos de Dom Bosco.
2 SVD: Sociedade do Verbo Divino


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Católicos e políticos: uma identidade em tensão. São Paulo: Paulinas, 2006 (Col. Quinta Conferência: Realidade social).

PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. 7. ed. São Paulo: Paulinas: 2013

VÁRIOS. Código de Direito Canônico. 15. ed. São Paulo: Loyola, 2002.

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