quinta-feira, 16 de abril de 2015

A Igreja e a redução da maioridade penal [ATUALIZADO]

              Diante da polêmica acerca da Proposta de Emenda Constitucional 171/1993, de autoria do ex-deputado Benedito Domingos (PP-DF), que se encontra tramitando na Câmara dos Deputados, o recado vai para os católicos, já que é a maior religião professada no Brasil.

            Qual a posição oficial da Igreja sobre a redução da idade penal? Simples, a Igreja Católica é CONTRA a redução da idade penal. A estrutura do catolicismo, que prega a fidelidade e obediência ao Papa, ao Magistério e os bispos, deveria se tornar uma regra para seus fiéis. Momento para aquele que se diz católico e ainda é a favor da redução da maoridade penal, repensar seus conceitos, ou caso não se acerte com o pensamento da Igreja, repensar sua concepção de fé.
            Apresento um trecho e um documento oficial da CNBB sobre o tema e o discurso do Papa Francisco à delegação da Associação Internacional de Direito Penal, proferido no Vaticano. O discurso do papa também aborda as condições dos presos, pena de morte e outros temas polêmicos.

1.       Mensagem da CNBB sobre a redução da maioridade penal, de 18 de junho de 2015 (link oficial com o texto completo aqui)


 “Felizes os que têm fome e sede da justiça, porque serão saciados” (Mt 5,6).

            Temos acompanhado, nos últimos dias, os intensos debates sobre a redução da maioridade penal, provocados pela votação desta matéria no Congresso Nacional. Trata-se de um tema de extrema importância porque diz respeito, de um lado, à segurança da população e, de outro, à promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente. É natural que a complexidade do tema deixe dividida a população que aspira por segurança. Afinal, ninguém pode compactuar com a violência, venha de onde vier.
            É preciso, no entanto, desfazer alguns equívocos que têm embasado a argumentação dos que defendem a redução da maioridade penal como, por exemplo, a afirmação de que há impunidade quando o adolescente comete um delito e que, com a redução da idade penal, se diminuirá a violência. No Brasil, a responsabilização penal do adolescente começa aos 12 anos. Dados do Mapa da Violência de 2014 mostram que os adolescentes são mais vítimas que responsáveis pela violência que apavora a população. Se há impunidade, a culpa não é da lei, mas dos responsáveis por sua aplicação.
            O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), saudado há 25 anos como uma das melhores leis do mundo em relação à criança e ao adolescente, é exigente com o adolescente em conflito com a lei e não compactua com a impunidade. As medidas socioeducativas nele previstas foram adotadas a partir do princípio de que todo adolescente infrator é recuperável, por mais grave que seja o delito que tenha cometido. Esse princípio está de pleno acordo com a fé cristã, que nos ensina a fazer a diferença entre o pecador e o pecado, amando o primeiro e condenando o segundo.
            Se aprovada a redução da maioridade penal, abrem-se as portas para o desrespeito a outros direitos da criança e do adolescente, colocando em xeque a Doutrina da Proteção Integral assegurada pelo ECA. Poderá haver um “efeito dominó” fazendo com que algumas violações aos direitos da criança e do adolescente deixem de ser crimes como a venda de bebida alcoólica, abusos sexuais, dentre outras.
            A comoção não é boa conselheira e, nesse caso, pode levar a decisões equivocadas com danos irreparáveis para muitas crianças e adolescentes, incidindo diretamente nas famílias e na sociedade. O caminho para pôr fim à condenável violência praticada por adolescentes passa, antes de tudo, por ações preventivas como educação de qualidade, em tempo integral; combate sistemático ao tráfico de drogas; proteção à família; criação, por parte dos poderes públicos e de nossas comunidades eclesiais, de espaços de convivência, visando a ocupação e a inclusão social de adolescentes e jovens por meio de lazer sadio e atividades educativas; reafirmação de valores como o amor, o perdão, a reconciliação, a responsabilidade e a paz.
            Consciente da importância de se dedicar mais tempo à reflexão sobre esse tema, também sob a luz do Evangelho, o Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, reunido em Brasília, nos dias 16 a 18 de junho, em consonância com a 53ª Assembleia Geral da CNBB, dirige esta mensagem a toda a sociedade brasileira, especialmente, às comunidades eclesiais, a fim de exortá-las a fazer uma opção clara em favor da criança e do adolescente. Digamos não à redução da maioridade penal e reivindiquemos das autoridades competentes o cumprimento do que estabelece o ECA para o adolescente em conflito com a lei.
            Que Nossa Senhora, a jovem de Nazaré, proteja as crianças e adolescentes do Brasil!
                                                                                           Brasília, 18 de junho de 2015.

Dom Sergio da Rocha
Arcebispo de Brasília-DF
Presidente da CNBB

Dom Murilo S. R. Krieger
Arcebispo de São Salvador da Bahia-BA
Vice-presidente da CNBB

Dom Leonardo Ulrich Steiner
Bispo Auxiliar de Brasília-DF
Secretário Geral da CNBB


2.     Trecho da Nota oficial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil sobre o momento nacional, de 24 de abril de 2015 (link oficial com o texto completo aqui)


           A PEC 171/1993, que propõe a redução da maioridade penal para 16 anos, já aprovada pela Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça da Câmara, também é um equívoco que precisa ser desfeito. A redução da maioridade penal não é solução para a violência que grassa no Brasil e reforça a política de encarceramento num país que já tem a quarta população carcerária do mundo. Investir em educação de qualidade e em políticas públicas para a juventude e para a família é meio eficaz para preservar os adolescentes da delinquência e da violência.
           O Estatuto da Criança e do Adolescente, em vigor há 25 anos, responsabiliza o adolescente, a partir dos 12 anos, por qualquer ato contra a lei, aplicando-lhe as medidas socioeducativas. Não procede, portanto, a alegada impunidade para adolescentes infratores. Onde essas medidas são corretamente aplicadas, o índice de reincidência do adolescente infrator é muito baixo. Ao invés de aprovarem a redução da maioridade penal, os parlamentares deveriam criar mecanismos que responsabilizem os gestores por não aparelharem seu governo para a correta aplicação das medidas socioeducativas.


3.     Nota oficial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil sobre a redução da idade penal, de 16 de maio de 2013 (link oficial aqui)

            O debate sobre a redução da maioridade penal, colocado em evidência mais uma vez pela comoção provocada por crimes bárbaros cometidos por adolescentes, conclama-nos a uma profunda reflexão sobre nossa responsabilidade no combate à violência, na promoção da cultura da vida e da paz e no cuidado e proteção das novas gerações de nosso país.
            A delinquência juvenil é, antes de tudo, um aviso de que o Estado, a Sociedade e a Família não têm cumprido adequadamente seu dever de assegurar, com absoluta prioridade, os direitos da criança e do adolescente, conforme estabelece o artigo 227 da Constituição Federal. Criminalizar o adolescente com penalidades no âmbito carcerário seria maquiar a verdadeira causa do problema, desviando a atenção com respostas simplórias, inconsequentes e desastrosas para a sociedade.
            A campanha sistemática de vários meios de comunicação a favor da redução da maioridade penal violenta a imagem dos adolescentes esquecendo-se de que eles são também vítimas da realidade injusta em que vivem. Eles não são os principais responsáveis pelo aumento da violência que nos assusta a todos, especialmente pelos crimes de homicídio. De acordo com a ONG Conectas Direitos Humanos, a maioria dos adolescentes internados na Fundação Casa, em São Paulo, foi detida por roubo (44,1%) e tráfico de drogas (41,8%). Já o crime de latrocínio atinge 0,9% e o de homicídio, 0,6%. É, portanto, imoral querer induzir a sociedade a olhar para o adolescente como se fosse o principal responsável pela onda de violência no país.
            O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ao contrário do que se propaga injustamente, é exigente com o adolescente em conflito com a lei e não compactua com a impunidade. Ele reconhece a responsabilização do adolescente autor de ato infracional, mas acredita na sua recuperação, por isso propõe a aplicação das medidas socioeducativas que valorizam a pessoa e lhe favoreçam condições de autossuperação para retornar a sua vida normal na sociedade. À sociedade cabe exigir do Estado não só a efetiva implementação das medidas socioeducativas, mas também o investimento para uma educação de qualidade, além de políticas públicas que eliminem as desigualdades sociais. Junta-se a isto a necessidade de se combater corajosamente a praga das drogas e da complexa estrutura que a sustenta, causadora de inúmeras situações que levam os adolescentes à violência.
            Adotada em 42 países de 54 pesquisados pela UNICEF, a maioridade penal aos 18 anos “decorre das recomendações internacionais que sugerem a existência de um sistema de justiça especializado para julgar, processar e responsabilizar autores de delitos abaixo dos 18 anos” (UNICEF). Reduzi-la seria “ignorar o contexto da cláusula pétrea constitucional – Constituição Federal, art. 228 –, além de confrontar a Convenção dos Direitos da Criança e do Adolescente, as regras Mínimas de Beijing, as Diretrizes para Prevenção da Delinquência Juvenil, as Regras Mínimas para Proteção dos Menores Privados de Liberdade (Regras de Riad), o Pacto de San José da Costa Rica e o Estatuto da Criança e do Adolescente” (cf. Declaração da CNBB contra a redução da maioridade penal – 24.04.2009).
            O Conselho Episcopal Pastoral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), reunido em Brasília, nos dias 14 a 16 de maio, reafirma que a redução da maioridade não é a solução para o fim da violência. Ela é a negação da Doutrina da Proteção Integral que fundamenta o tratamento jurídico dispensado às crianças e adolescentes pelo Direito Brasileiro. A Igreja no Brasil continua acreditando na capacidade de regeneração do adolescente quando favorecido em seus direitos básicos e pelas oportunidades de formação integral nos valores que dignificam o ser humano.
            Não nos cansemos de combater a violência que é contrária ao Reino de Deus; ela “nunca está a serviço da humanidade, mas a desumaniza”, como nos recordava o papa Bento XVI (Angelus, 11 de março de 2012). Deus nos conceda a todos um coração materno que pulse com misericórdia e responsabilidade pela pessoa violentada em sua adolescência. Nossa Senhora Aparecida proteja nossos adolescentes e nos auxilie na defesa da família.
Brasília, 16 de maio de 2013.

Dom José Belisário da Silva
Arcebispo de São Luís do Maranhão
Presidente da CNBB em exercício

Dom Sergio Arthur Braschi

Bispo de Ponta Grossa

Vice-Presidente da CNBB em exercício

Dom Leonardo Ulrich Steiner

Bispo Auxiliar de Brasília
Secretário Geral da CNBB





4.     Discurso do Papa Francisco à delegação da Associação Internacional de Direito Penal (link oficial aqui e versão para download em pdf aqui)


Sala dos Papas
Quinta-feira, 23 de Outubro de 2014

                Ilustres Senhores e Senhoras!
            Saúdo-vos a todos cordialmente e desejo expressar-vos o meu agradecimento pessoal pelo vosso serviço à sociedade e a preciosa contribuição que dais ao desenvolvimento de uma justiça que respeite a dignidade e os direitos da pessoa humana, sem discriminações.
            Gostaria de partilhar convosco alguns aspectos de certas questões que, mesmo sendo opináveis — em parte! — dizem diretamente respeito à dignidade da pessoa humana e por conseguinte interpelam a Igreja na sua missão de evangelização, promoção humana, serviço à justiça e à paz. Fá-lo-ei de modo resumido e por capítulos, com um estilo bastante expositivo e sintético.

Introdução

            Antes de tudo pretendo apresentar duas premissas de natureza sociológica que dizem respeito à incitação à vingança e ao populismo penal.

            a) Incitação à vingança
            Na mitologia, assim como nas sociedades primitivas, a multidão descobre os poderes maléficos das suas vítimas sacrificais, acusadas das desgraças que atingem a comunidade. Esta dinâmica também está presente nas sociedades modernas. A realidade mostra que a existência de instrumentos legais e políticos necessários para enfrentar e resolver conflitos não oferece garantias suficientes para evitar que alguns indivíduos sejam considerados culpados dos problemas de todos.
           
    A vida em comum, estruturada em volta de comunidades organizadas, precisa de regras de convivência cuja livre violação exige uma resposta adequada. Contudo, vivemos em tempos nos quais, tanto por parte de alguns sectores da política como de certos meios de comunicação, por vezes se incita à violência e à vingança, pública e privada, não só contra quantos são responsáveis por ter cometido delitos, mas também contra aqueles sobre os quais recai a suspeita, fundada ou não, de ter infringido a lei.

            b) Populismo penal
            Neste contexto, difundiu-se nos últimos decénios a convicção de que através da pena pública se podem resolver todos os tipos de problemas sociais, como se para as doenças mais diversas nos fosse recomendado o mesmo remédio. Não se trata de confiança em qualquer função social tradicionalmente atribuída à pena pública, mas antes da convicção de que mediante tal pena se possam obter aqueles benefícios que exigiriam a implementação de outro tipo de política social, económica e de inclusão social.
Não se procuram apenas bodes expiatórios que paguem com a sua liberdade e com a sua vida por todos os males sociais, como era típico nas sociedades primitivas, mas além disso há por vezes a tendência a construir deliberadamente inimigos: figuras estereotipadas, que concentram em si todas as características que a sociedade sente ou interpreta como ameaçadoras. Os mecanismos de formação destas imagens são os mesmos que, outrora, permitiram a expansão das ideias raciais.

I. Sistemas penais fora de controle e a missão dos juristas
O princípio-guia da cautela in poenam

            Assim, o sistema penal vai além da sua função propriamente sancionatória para se colocar no terreno das liberdades e dos direitos das pessoas, sobretudo das mais vulneráveis, em nome de uma finalidade preventiva cuja eficácia, até agora, não se pôde comprovar, nem sequer nas penas mais graves, como a pena de morte. Corre-se o risco de não conservar nem sequer a proporcionalidade das penas, que historicamente reflecte a escala de valores tutelados pelo Estado. Foi-se debilitando a concepção do direito penal como ultima ratio, como recurso à sanção, limitado aos factos mais graves contra os interesses individuais e colectivos mais dignos de protecção. Debilitou-se também o debate sobre a substituição da prisão com outras sanções penais alternativas. Neste contexto, a missão dos juristas pode ser unicamente a de limitar e conter tais tendências. É uma tarefa difícil, em tempos nos quais muitos juízes e agentes do sistema penal devem desempenhar a sua tarefa sob a pressão dos meios de comunicação de massa, de alguns políticos sem escrúpulos e das pulsões de vingança que se insinuam na sociedade. Quantos têm tal responsabilidade estão chamados a cumprir o seu dever, dado que não fazê-lo põe em perigo vidas humanas, que precisam de ser cuidadas com maior intrepidez de quanta se tem por vezes no cumprimento das próprias funções.

II. Sobre a primazia da vida e a dignidade da pessoa humana
Primatus principii pro homine

            a) Sobre a pena de morte
            É impossível imaginar que hoje os Estados não possam dispor de outro meio, que não seja a pena capital, para defender a vida de outras pessoas do agressor injusto.
            São João Paulo II condenou a pena de morte (cf. Carta enc. Evangelium vitae, 56), como também faz o Catecismo da Igreja Católica (n. 2267).
            Contudo, pode verificar-se que os Estados tirem a vida não só com a pena de morte e com as guerras, mas também quando oficiais públicos se refugiam à sombra dos poderes estatais para justificar os seus crimes. As chamadas execuções extrajudiciais ou extralegais são homicídios deliberados cometidos por alguns Estados e pelos seus agentes, com frequência feitos passar como confrontos com delinquentes ou apresentados como consequências indesejadas do uso razoável, necessário e proporcional da força para mandar aplicar a lei. Deste modo, mesmo se entre os 60 países nos quais a pena de morte está em vigor, 35 não a aplicaram nos últimos dez anos, a pena de morte, ilegalmente ou em diversos graus, aplica-se em todo o planeta.
            As mesmas execuções extrajudiciais são perpetradas de maneira sistemática não só pelos Estados da comunidade internacional, mas também por entidades não reconhecidas como tais, e representam autênticos crimes.
            Os argumentos contrários à pena de morte são muitos e bem conhecidos. A Igreja frisou oportunamente alguns deles, como a possibilidade da existência de erro judiciário e o uso que dela fazem os regimes totalitários e ditatoriais, que a utilizam como instrumento de supressão da dissidência política ou de perseguição das minorias religiosas e culturais, todas vítimas que para as suas respectivas legislações são “delinquentes”.
            Por conseguinte, todos os cristãos e homens de boa vontade estão chamados hoje a lutar não só pela abolição da pena de morte, legal ou ilegal, e em todas as suas formas, mas também para melhorar as condições carcerárias, no respeito pela dignidade humana das pessoas privadas da liberdade. E relaciono à prisão perpétua. No Vaticano, há pouco tempo, a prisão perpétua deixou de existir no Código penal. A prisão perpétua é uma pena de morte escondida.

            b) Sobre as condições da prisão dos presos sem condenação e dos condenados sem julgamento
            Não são fábulas, vós sabei-lo bem. A prisão preventiva — quando acontece de forma abusiva procura uma antecipação da pena, prévia à condenação, ou como medida que se aplica quando há a suspeita mais ou menos fundada de um delito cometido — constitui outra forma contemporânea de pena ilícita oculta, para além de uma aparência de legalidade.
            Esta situação é particularmente grave nalguns países e regiões do mundo, onde o número dos detidos sem condenação supera 50% do total. Este fenômeno contribui para um maior deterioramento das condições de detenção, situação que a construção de novas prisões nunca consegue resolver, dado que cada nova prisão já está cheia ainda antes de ser inaugurada. Além disso, é causa de um uso indevido de estações de polícia e militares como lugares de detenção.
            O problema dos detidos sem condenação deve ser enfrentado com a devida cautela, dado que se corre o risco de criar outro problema tão grave como o primeiro, ou até pior: o dos presos sem julgamento, condenados sem que sejam respeitadas as regras do processo.

            As deploráveis condições de detenção que se verificam em diversas partes do planeta constituem muitas vezes um autêntico aspecto desumano e degradante, sendo muitas vezes o produto das imperfeições do sistema penal, outras, da carência de infra-estruturas e de planificação, e em muitos casos mais não são que o resultado do exercício arbitrário e cruel do poder sobre as pessoas privadas da liberdade.

            c) Sobre a tortura e outras medidas e penas cruéis desumanas e degradantes
            O adjetivo “cruel”; por detrás destas figuras que mencionei, há sempre aquela raiz: a capacidade humana de crueldade. É uma paixão, uma verdadeira paixão! Por vezes, uma forma de tortura é a que se aplica mediante a reclusão em prisões de máxima segurança. Com o motivo de oferecer maior segurança à sociedade ou um tratamento especial para certas categorias de detidos, a sua principal característica mais não é que o isolamento do exterior. Como demonstram estudos realizados por diversos organismos de defesa dos direitos humanos, a falta de estímulos sensoriais, a impossibilidade total de comunicação e a falta de contatos com outros seres humanos causam sofrimentos psíquicos como a paranoia, a ansiedade, a depressão e a perda de peso e incrementam sensivelmente a tendência ao suicídio.
            Este fenômeno, característico das prisões de máxima segurança, verifica-se também noutros tipos de prisão, juntamente com outras formas de tortura física e psíquica cuja prática se difundiu. As torturas já não são praticadas apenas como meio para obter um determinado fim, como a confissão ou a denúncia — práticas características da doutrina da segurança nacional — mas constituem um autêntico plus de dor que se acrescenta aos males próprios da prisão preventiva. Desta forma, tortura-se não só em centros clandestinos de prisão ou em modernos campos de concentração, mas também em prisões, institutos para menores, hospitais psiquiátricos, comissariados e outros centros e instituições de detenção e pena.
            A própria doutrina penal tem uma importante responsabilidade nisto, como ter permitido em certos casos a legitimação da tortura com certos pressupostos, abrindo o caminho a abusos ulteriores e mais extensos.
            Muitos Estados são responsáveis também por terem praticado ou tolerado o sequestro de pessoas no próprio território, inclusive o de cidadãos dos seus respectivos países, ou por terem autorizado o uso do seu espaço aéreo para um transporte ilegal para centros de detenção nos quais se pratica a tortura.
            A estes abusos só poderá ser posto fim com o compromisso firme da comunidade internacional a reconhecer a primazia do princípio pro homine, ou seja, da dignidade da pessoa humana acima de tudo.

            d) Sobre a aplicação das sanções penais a crianças e idosos e a outras pessoas especialmente vulneráveis
            Os Estados devem abster-se de castigar penalmente as crianças, que ainda não completaram o seu desenvolvimento para a maturidade e por este motivo não podem ser acusadas. Ao contrário, elas devem as destinatárias de todos os privilégios que o Estado é capaz de oferecer, quer no que diz respeito a políticas de inclusão quer no respeitante a práticas que se orientam para fazer crescer nelas o respeito pela vida e pelos direitos dos outros.
            Os idosos, por seu lado, são aquelas pessoas que a partir dos seus erros podem oferecer ensinamentos ao resto da sociedade. Não se aprende apenas das virtudes dos santos, mas também das faltas e dos erros dos pecadores e, entre eles, de quantos, por um motivo ou por outro, caíram e cometeram delitos. Além disso, razões humanitárias impõem que, assim como se deve excluir ou limitar o castigo a quem sofre enfermidades graves ou terminais, a mulheres grávidas, a pessoas deficientes, a mães e pais que são os únicos responsáveis por menores ou deficientes, também os adultos de idade já avançada merecem tratamentos particulares.

III. Considerações sobre algumas formas de criminalidade que lesam gravemente a dignidade da pessoa e o bem comum

            Algumas formas de criminalidade, perpetradas por privados, lesam gravemente a dignidade das pessoas e o bem comum. Muitas destas formas de criminalidade nunca poderiam ser cometidas sem a cumplicidade, ativa ou omissiva, das autoridades públicas.

            a) Sobre o delito do tráfico de pessoas
            A escravidão, incluído o tráfico de pessoas, é reconhecido como delito contra a humanidade e como crime de guerra, quer pelo direito internacional quer por muitas legislações nacionais. É um delito de humanidade lesada. E, a partir do momento que não é possível cometer um delito tão complexo como o tráfico de pessoas sem a cumplicidade, com a ação ou a omissão, dos Estados, é evidente que, quando os esforços para prevenir ou combater este fenómeno não são suficientes, estamos de novo diante de um crime contra a humanidade. Mais ainda, se acontece que quem tem a função de proteger as pessoas e garantir a sua liberdade, se torna cúmplice dos que praticam o comércio de seres humanos, então, nestes casos, os Estados são responsáveis diante dos seus cidadãos e da comunidade internacional.

            Pode-se falar de um bilião de pessoas que vivem na pobreza absoluta. Um bilião e meio não tem acesso aos serviços higiênicos, à água potável, à eletricidade, à educação básica ou ao sistema de saúde e devem suportar privações econômicas incompatíveis com uma vida digna (2014 Human development Report, UNDP). Mesmo se o número total de pessoas nesta situação diminuiu nestes últimos anos, incrementou-se a sua vulnerabilidade, por causa do aumento das dificuldades que devem enfrentar para sair dessa situação.          Isto deve-se à quantidade sempre crescente de pessoas que vivem em países em conflito. Só no ano de 2013 quarenta e cinco milhões de pessoas foram obrigadas a fugir por causa de situações de violência ou perseguições; delas, quinze milhões são refugiados, o número mais elevado em dezoito anos. Destas pessoas, 70% são mulheres. Além disso, calcula-se que no mundo, de cada dez que morrem de fome, sete são mulheres e meninas (Fundo das Nações Unidas para as Mulheres, UNIFEM).

            b) Sobre o delito de corrupção
            A escandalosa concentração da riqueza global é possível por causa da conivência de responsáveis da gestão pública com os poderes fortes. A corrupção é ela mesma também um processo de morte: quando a vida morre, há corrupção.
            Há poucas coisas mais difíceis do que abrir uma fresta num coração corrupto: “Isso é o que acontece com aqueles que juntam riquezas para si mesmos, mas para Deus não são ricos” (Lc 12, 21). Quando a situação pessoal do corrupto se torna complicada, ele conhece todos os subterfúgios para a evitar, como fez o administrador desonesto do Evangelho (cf. Lc 16, 1-8).
            O corrupto atravessa a vida com os subterfúgios do oportunismo, com o ar de quem diz: “Não fui eu”, chegando a interiorizar a sua máscara de homem honesto. É um processo de interiorização. O corrupto não pode aceitar a crítica, desqualifica quem a faz, procura diminuir qualquer autoridade moral que o possa pôr em questão, não valoriza os outros e ataca com o insulto quem quer que pense de maneira diversa. Se as relações de força o permitirem, persegue todo aquele que o contradiz.
            A corrupção manifesta-se numa atmosfera de triunfalismo porque o corrupto se considera um vencedor. Naquele ambiente pavoneia-se para diminuir os outros.       O corrupto não sente a sua corrupção. Acontece como com o mau hálito: dificilmente quem o tem se apercebe de o ter; são os outros que o sentem e que lho devem dizer. Por este motivo, o corrupto dificilmente poderá sair do seu estado por remorso interno de consciência.
            A corrupção é um mal maior que o pecado. Mais do que perdoado, este mal deve ser curado. A corrupção tornou-se natural, a ponto de chegar a constituir um estado pessoal e social ligado ao costume, uma prática habitual nas transações comerciais e financeiras, nas empreitadas públicas, em cada negociação que envolva agentes do Estado. É a vitória das aparências sobre a realidade e do descaramento impudico sobre a discrição honrada.

            Contudo, o Senhor não se cansa de bater à porta dos corruptos. A corrupção nada pode contra a esperança.
            Que pode fazer o direito penal contra a corrupção? Já são muitas as convenções e os tratados internacionais sobre esta matéria e proliferaram as hipóteses de crime que se destinam a proteger não tanto os cidadãos, que afinal são as últimas vítimas — em particular os mais vulneráveis — quanto a tutelar os interesses dos agentes dos mercados econômicos e financeiros.
            A sanção penal é seletiva. É como uma rede que captura só os peixes pequenos, e deixa os grandes em liberdade no mar. As formas de corrupção que devem ser perseguidas com a maior severidade são as que causam graves danos sociais, quer em matéria econômica e social — como por exemplo graves fraudes contra a administração pública ou a prática desleal da administração — quer em qualquer tipo de obstáculo que se intrometa no funcionamento da justiça com a intenção de conseguir a impunidade para as próprias burlas ou para as de terceiros.

Conclusão
            A cautela na aplicação da pena deve ser o princípio que rege os sistemas penais, e o vigor e a aplicação plena do princípio pro homine devem garantir que os Estados não sejam habilitados, juridicamente ou em vias de facto, a subordinar o respeito da dignidade da pessoa humana a qualquer outra finalidade, mesmo quando se conseguir alcançar uma espécie qualquer de utilidade social. O respeito da dignidade humana deve agir não só como limite à arbitrariedade e aos excessos dos agentes do Estado, mas como critério de orientação para perseguir e reprimir aqueles comportamentos que representam os ataques mais graves à dignidade e integridade da pessoa humana.
            Queridos amigos, agradeço-vos de novo este encontro, e garanto-vos que continuarei a estar próximo do vosso trabalho exigente ao serviço do homem no âmbito da justiça. Não há dúvida de que, para quantos de vós estão chamados a viver a vocação cristã do próprio Batismo, este é um campo privilegiado de animação evangélica do mundo. Para todos, também para aqueles entre vós que não são cristãos, há contudo necessidade da ajuda de Deus, fonte de qualquer razão e justiça. Por conseguinte, invoco para cada um de vós, com a intercessão da Virgem Mãe, a luz e a força do Espírito Santo. Abençoo-vos de coração, e por favor peço-vos que rezeis por mim. Obrigado!


Material divulgado amplamente divulgado pela Pastoral da Juventude no Brasil sobre o tema

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